domingo, 28 de setembro de 2008

Da Imparcialidade

Eu gosto de gelo. Desde muito cedo, eu gostava de olhar cubinhos de gelo brincando faceiros num copo com água em dia de verão, ou então, enquanto o suco era preparado, eu ia na bandeijinha, molhava-a e roubava um cubinho para mim. Pegava-o entre o indicador e o polegar e gostava de visualizar tudo através dele, suas imagens fantasmas e sem delimitações, que se esvaiam por entre os dedos, como quando acordamos no meio do sonho ou quando acordamos assustados achando que estamos caindo. Mãos e braços úmidos após tentar enxergar até mesmo o sol através do gelo em quadrado arredondado, colocava-o na boca e mal sentia quando ele ia embora.
Visto-me na maior parte das vezes de preto, seja com o uniforme da empresa, seja ao vestir-me para uma festa. O preto oculta segredos, alguns deles até de mim. Olhos negros. Cabelos escuros – só não mais em função do ressacado do sol – e, por um longo período, até a cintura, quase como uma segunda pele; o casaco predileto. Assim sempre me protegi. Atrás de tudo que pudesse não me expor.
Há algum tempo, redescobri toda a beleza das cores claras, os tons pastéis. Foi traumático. Uma garça branca passou por mim e aqui estou, sem conseguir me desfazer de seu encanto, e talvez jamais me desfaça, basta que eu não descubra o que exatamente me encanta: portando a fórmula, chegaria à solução, e, certemente, experimentaria a cura (sou medrosa, não agüentaria sofrer) perderá a graça, a minha querida garça. Ela é leve, alva, delicada. Sinto toda sua fragilidade e me esforço para não ir com tudo, com todo o meu ímpeto e vontade e sede, posso assustá-la, ela pode fugir e nunca mais voltar e eu não suportaria. Talvez eu a quebre, provavelmente a estraçalhe, por isso preciso ter calma. Quem me diz que o tempo resolve tudo, está esperando em vão algo que no fundo já sabe que não conseguirá. Eu tenho pressa. Esperar é perder. Tempo e oportunidades.
Minha garça é branca como a neve, fria como o gelo e seu habitat, é longínquo. De vez em quando eu mando um sinal a fim de que ela me enxergue, mas nem sempre tenho sucesso. Meu medo é me aproximar demais e derreter o gelo, mas preciso desse alívio, pois o que reina aqui é o oposto. Ela foge, se esvai e eu mal consigo senti-la, não sinto seu perfume, não encontro seu olhar.
Teria eu chegado num momento decisivo de clarear minha vida? É provável. Ela me gela e me deixa os calafrios. Para esses suaves traços quero ensinar caminhos. Escorregar pelo dorso e servir de aconchego. Mergulhar em seu olhar e passar o resto de meu tempo a aquecer cada pedaço, derreter aos poucos e misturar até não mais dissociar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

À procura da ilha desconhecida...

... entro eu na tua vida, acordando barata, vomitando coelhinhos.

Niño Matheus



– Mas como vocês só me ligam só agora? Me diz agora, o que aconteceu! – gritava Mariana.

Junto de seu pedido chegava outra viatura que, ao estacionar, desmanchava o grupo de curiosos aglomerados, em plena tarde ensolarada, numa das portas do mercado público, a do Largo Glênio Peres. Com alguma dificuldade, os policiais conseguiram chegar à loja. A primeira imagem vista ao entrar, após desviar de algumas ervas que pendiam do teto do estabelecimento, é a de uma jovem senhora, com a região ao redor do canto direito da boca inchada e com um pequeno corte, sentada num dos sacos de condimento, a olhar para o nada. Mariana, em pé, olhava tristemente para a mãe, sem saber o que lhe dizer. Pessoas espremidas ao redor comentavam o acontecido; viam-se algumas se aproveitando da confusão para degustar os amendoins de um dos sacos arrebentados. Davam versões, se compadeciam das vítimas, algumas, rezavam.

– Me desculpa, filha – disse Dona Irene, após o qual se seguiu um longo suspiro.

– Tá, mãe, calma, tudo vai dar certo. Faz quanto tempo que levaram o pai?

– Faz uns cinco minutos, foi só eles saírem que tu chegou.

– Por que a senhora não foi junto?

– Eu te esperei para te contar o que... – e ela não conseguiu prosseguir, o pranto tomou o lugar das palavras.

– Tudo bem, não fala nada, eu já disse, tudo vai dar certo.

Mariana foi obrigada a engolir toda sua dor para cuidar de mãe. Ela tinha de ser cuidadosa, pois a mãe, assim como o pai, sofria do coração e qualquer emoção mais forte estava fora de questão. O pai não agüentara, teve um infarto assim que os assaltantes foram embora levando seu neto. Largo Glercado pa jue, ao estacionar, desmanchava o grupo de curiosos que se aglomerava em plena tarde ensolarada

Uma viatura levou-as até o hospital onde seu Antônio estava sendo operado. Dona Irene não conseguia proferir palavra, e, deitada no ombro de Mariana, procurava, a todo o custo, contar-lhe o acontecido. As informações passadas pela polícia não eram suficientes para Mariana, ela queria saber mais, queria poder expor toda a dor de uma mãe que se vê numa situação dessas.

– O Aldo tava junto – disse Dona Irene.

– O quê?! – Respondeu Mariana levando as mãos ao rosto. Dona Irene recomeça o pranto, momentos depois silenciado pelo seu repentino desfalecimento.

Mariana dorme no pequeno sofá destinado aos acompanhantes dos internos. Uma enfermeira entra no quarto para diminuir a dose de soro da mãe, e o pai, ainda anestesiado, está na sala de recuperação. A enfermeira sai do quarto e retorna com um cobertor. Ela não pode deixar de reparar no inchaço do rosto de Mariana. Ela cobre-a sem acordá-la e sai. Mariana passou o dia inteiro na delegacia, querendo saber sobre o assalto e passando informações sobre Aldo. Segundo os relatos, foi tudo muito rápido. Na loja estava o dono, um funcionário – um jovem rapaz, baleado na confusão – os pais de Mariana, e o filho, Matheus. Após passear pelo Gasômetro, eles foram até o Mercado Público. Seu Antônio tinha de comprar alguns de seus temperos, pois o estoque de casa estava terminando. Antônio assistia ao dono pesar os condimentos escolhidos. Matheus, no colo de Dona Irene, divertia-se dando tapas em tudo o que estava ao alcance de suas mãos. O jovem funcionário, até então à frente da loja para chamar freguesia, havia saído para ir ao banheiro. Ao retornar, viu seu patrão dando a um dos bandidos – o encapuzado – todo o dinheiro do caixa e, Seu Antônio e Dona Irene colados junto a uma das prateleiras a fim de proteger o neto que chorava no colo deles.

– Tu tá achando que eu tenho o dia inteiro?! Vamu com isso! – Disse o rapaz, não muito alto, a fim de não chamar atenção, apontando uma arma para o dono. Enquanto isso, o outro vigiava a entrada do estabelecimento, que, para a sorte deles, estava coberta pela vasta variedade de chás, impedindo que se visse o que acontecia lá dentro, talvez sendo esse o motivo para terem escolhido aquela loja, ao invés de qualquer outra. Além disso, ela ficava bem próxima a uma das saídas do Mercado.

– Vamu, vamu! Disse o rapaz armado em direção à porta no mesmo momento em que o outro que vigiava fez o caminho inverso e foi para cima do casal que protegia o neto, que estava quase por completo dentro da prateleira. Tentou afastá-los, desferiu um soco em Dona Irene. Seu Antônio agarrou-se ao neto ao ver o que o bandido pretendia. O funcionário que chegava, ao ver o bandido armado próximo à porta, concluiu que dificilmente ele usaria a arma, correu para ajudar o avô do menino.

– Vamu, meu! – Disse o armado.

– Ô meu, me ajuda aqui!

O bandido, parado à porta, ao ver que o choro do menino já chamava a atenção, atira no funcionário, nas costas, à altura do ombro. Seu Antônio solta Matheus e cai inconsciente no chão. Os dois correm no meio dos transeuntes; o primeiro, armado, afastando quem vêm à frente e, em seguida, o segundo, segurando Matheus pela cintura, que já tinha a pequena camiseta molhada, de tanto chorar. Dona Irene, caída no chão, segue com olhar o neto, que ao vê-la, acalma-se. Ao sair do Mercado Público, entram num carro que estava à espera deles e desaparecem em meio ao caos.

Expressões do Subconsciente

terça-feira, 2 de setembro de 2008

A Breve Garça

O pulsar de uma redenção não possível retorna, agora, latente, mas exigindo libertação. Próximo, mas por um breve momento, tão breve. Emerge o que reinava; guardado, empoeirado e desbotado, volta, no claro de uma imagem de Éden. Retorna e me leva pra onde eu já fui e voltei algumas tantas vezes. De novo. Aqui. E contigo.

Intertextualidade II - Apresentação do Objeto de Estudo


Foto: Ronaldo Netto Amboni