domingo, 28 de setembro de 2008

Da Imparcialidade

Eu gosto de gelo. Desde muito cedo, eu gostava de olhar cubinhos de gelo brincando faceiros num copo com água em dia de verão, ou então, enquanto o suco era preparado, eu ia na bandeijinha, molhava-a e roubava um cubinho para mim. Pegava-o entre o indicador e o polegar e gostava de visualizar tudo através dele, suas imagens fantasmas e sem delimitações, que se esvaiam por entre os dedos, como quando acordamos no meio do sonho ou quando acordamos assustados achando que estamos caindo. Mãos e braços úmidos após tentar enxergar até mesmo o sol através do gelo em quadrado arredondado, colocava-o na boca e mal sentia quando ele ia embora.
Visto-me na maior parte das vezes de preto, seja com o uniforme da empresa, seja ao vestir-me para uma festa. O preto oculta segredos, alguns deles até de mim. Olhos negros. Cabelos escuros – só não mais em função do ressacado do sol – e, por um longo período, até a cintura, quase como uma segunda pele; o casaco predileto. Assim sempre me protegi. Atrás de tudo que pudesse não me expor.
Há algum tempo, redescobri toda a beleza das cores claras, os tons pastéis. Foi traumático. Uma garça branca passou por mim e aqui estou, sem conseguir me desfazer de seu encanto, e talvez jamais me desfaça, basta que eu não descubra o que exatamente me encanta: portando a fórmula, chegaria à solução, e, certemente, experimentaria a cura (sou medrosa, não agüentaria sofrer) perderá a graça, a minha querida garça. Ela é leve, alva, delicada. Sinto toda sua fragilidade e me esforço para não ir com tudo, com todo o meu ímpeto e vontade e sede, posso assustá-la, ela pode fugir e nunca mais voltar e eu não suportaria. Talvez eu a quebre, provavelmente a estraçalhe, por isso preciso ter calma. Quem me diz que o tempo resolve tudo, está esperando em vão algo que no fundo já sabe que não conseguirá. Eu tenho pressa. Esperar é perder. Tempo e oportunidades.
Minha garça é branca como a neve, fria como o gelo e seu habitat, é longínquo. De vez em quando eu mando um sinal a fim de que ela me enxergue, mas nem sempre tenho sucesso. Meu medo é me aproximar demais e derreter o gelo, mas preciso desse alívio, pois o que reina aqui é o oposto. Ela foge, se esvai e eu mal consigo senti-la, não sinto seu perfume, não encontro seu olhar.
Teria eu chegado num momento decisivo de clarear minha vida? É provável. Ela me gela e me deixa os calafrios. Para esses suaves traços quero ensinar caminhos. Escorregar pelo dorso e servir de aconchego. Mergulhar em seu olhar e passar o resto de meu tempo a aquecer cada pedaço, derreter aos poucos e misturar até não mais dissociar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

À procura da ilha desconhecida...

... entro eu na tua vida, acordando barata, vomitando coelhinhos.

Niño Matheus



– Mas como vocês só me ligam só agora? Me diz agora, o que aconteceu! – gritava Mariana.

Junto de seu pedido chegava outra viatura que, ao estacionar, desmanchava o grupo de curiosos aglomerados, em plena tarde ensolarada, numa das portas do mercado público, a do Largo Glênio Peres. Com alguma dificuldade, os policiais conseguiram chegar à loja. A primeira imagem vista ao entrar, após desviar de algumas ervas que pendiam do teto do estabelecimento, é a de uma jovem senhora, com a região ao redor do canto direito da boca inchada e com um pequeno corte, sentada num dos sacos de condimento, a olhar para o nada. Mariana, em pé, olhava tristemente para a mãe, sem saber o que lhe dizer. Pessoas espremidas ao redor comentavam o acontecido; viam-se algumas se aproveitando da confusão para degustar os amendoins de um dos sacos arrebentados. Davam versões, se compadeciam das vítimas, algumas, rezavam.

– Me desculpa, filha – disse Dona Irene, após o qual se seguiu um longo suspiro.

– Tá, mãe, calma, tudo vai dar certo. Faz quanto tempo que levaram o pai?

– Faz uns cinco minutos, foi só eles saírem que tu chegou.

– Por que a senhora não foi junto?

– Eu te esperei para te contar o que... – e ela não conseguiu prosseguir, o pranto tomou o lugar das palavras.

– Tudo bem, não fala nada, eu já disse, tudo vai dar certo.

Mariana foi obrigada a engolir toda sua dor para cuidar de mãe. Ela tinha de ser cuidadosa, pois a mãe, assim como o pai, sofria do coração e qualquer emoção mais forte estava fora de questão. O pai não agüentara, teve um infarto assim que os assaltantes foram embora levando seu neto. Largo Glercado pa jue, ao estacionar, desmanchava o grupo de curiosos que se aglomerava em plena tarde ensolarada

Uma viatura levou-as até o hospital onde seu Antônio estava sendo operado. Dona Irene não conseguia proferir palavra, e, deitada no ombro de Mariana, procurava, a todo o custo, contar-lhe o acontecido. As informações passadas pela polícia não eram suficientes para Mariana, ela queria saber mais, queria poder expor toda a dor de uma mãe que se vê numa situação dessas.

– O Aldo tava junto – disse Dona Irene.

– O quê?! – Respondeu Mariana levando as mãos ao rosto. Dona Irene recomeça o pranto, momentos depois silenciado pelo seu repentino desfalecimento.

Mariana dorme no pequeno sofá destinado aos acompanhantes dos internos. Uma enfermeira entra no quarto para diminuir a dose de soro da mãe, e o pai, ainda anestesiado, está na sala de recuperação. A enfermeira sai do quarto e retorna com um cobertor. Ela não pode deixar de reparar no inchaço do rosto de Mariana. Ela cobre-a sem acordá-la e sai. Mariana passou o dia inteiro na delegacia, querendo saber sobre o assalto e passando informações sobre Aldo. Segundo os relatos, foi tudo muito rápido. Na loja estava o dono, um funcionário – um jovem rapaz, baleado na confusão – os pais de Mariana, e o filho, Matheus. Após passear pelo Gasômetro, eles foram até o Mercado Público. Seu Antônio tinha de comprar alguns de seus temperos, pois o estoque de casa estava terminando. Antônio assistia ao dono pesar os condimentos escolhidos. Matheus, no colo de Dona Irene, divertia-se dando tapas em tudo o que estava ao alcance de suas mãos. O jovem funcionário, até então à frente da loja para chamar freguesia, havia saído para ir ao banheiro. Ao retornar, viu seu patrão dando a um dos bandidos – o encapuzado – todo o dinheiro do caixa e, Seu Antônio e Dona Irene colados junto a uma das prateleiras a fim de proteger o neto que chorava no colo deles.

– Tu tá achando que eu tenho o dia inteiro?! Vamu com isso! – Disse o rapaz, não muito alto, a fim de não chamar atenção, apontando uma arma para o dono. Enquanto isso, o outro vigiava a entrada do estabelecimento, que, para a sorte deles, estava coberta pela vasta variedade de chás, impedindo que se visse o que acontecia lá dentro, talvez sendo esse o motivo para terem escolhido aquela loja, ao invés de qualquer outra. Além disso, ela ficava bem próxima a uma das saídas do Mercado.

– Vamu, vamu! Disse o rapaz armado em direção à porta no mesmo momento em que o outro que vigiava fez o caminho inverso e foi para cima do casal que protegia o neto, que estava quase por completo dentro da prateleira. Tentou afastá-los, desferiu um soco em Dona Irene. Seu Antônio agarrou-se ao neto ao ver o que o bandido pretendia. O funcionário que chegava, ao ver o bandido armado próximo à porta, concluiu que dificilmente ele usaria a arma, correu para ajudar o avô do menino.

– Vamu, meu! – Disse o armado.

– Ô meu, me ajuda aqui!

O bandido, parado à porta, ao ver que o choro do menino já chamava a atenção, atira no funcionário, nas costas, à altura do ombro. Seu Antônio solta Matheus e cai inconsciente no chão. Os dois correm no meio dos transeuntes; o primeiro, armado, afastando quem vêm à frente e, em seguida, o segundo, segurando Matheus pela cintura, que já tinha a pequena camiseta molhada, de tanto chorar. Dona Irene, caída no chão, segue com olhar o neto, que ao vê-la, acalma-se. Ao sair do Mercado Público, entram num carro que estava à espera deles e desaparecem em meio ao caos.

Expressões do Subconsciente

terça-feira, 2 de setembro de 2008

A Breve Garça

O pulsar de uma redenção não possível retorna, agora, latente, mas exigindo libertação. Próximo, mas por um breve momento, tão breve. Emerge o que reinava; guardado, empoeirado e desbotado, volta, no claro de uma imagem de Éden. Retorna e me leva pra onde eu já fui e voltei algumas tantas vezes. De novo. Aqui. E contigo.

Intertextualidade II - Apresentação do Objeto de Estudo


Foto: Ronaldo Netto Amboni

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Intertextualidade I - Uma introdução

Apenas na cabeça de pessoas desprovidas de limite é que se é possível tornar comum o destino dessas duas figuras. Em busca de uma mesma redenção é que os homenageio, afinal, se cruzam perdidos pelo meu gosto musical.

Given to Fly
Pearl Jam

He could have tuned in, tuned in, but he tuned out

a bad time, nothing could save him

Alone in a corridor, waiting, locked out

he got up out of there, ran for hundreds of miles

He made it to the ocean

had a smoke in a tree

The wind rose up, set him down on his knee

Wave came crashing like a fist to the jaw,

Delivered him wings, "Hey, look at me now..."

Arms wide open with the sea as his floor

Oh, Power, oh...

He's flying! Woah!

Whole! Woah! Oh...

Floated back down 'cause he wanted to share

his key to the locks on the chains he saw everywhere

But first he was stripped, and then he was stabbed

by faceless men, well... He still stands.

And he still gives his love, he just gives it away

the love he recieves is the love that is saved

And sometimes is seen a strange spot in the sky

a human being that was given to fly

Flying! Woah...

Whole! Flying! Woah...

Flying Woah...

Oh Woah...


Sobre as Folhas (ou O Barão nas Árvores)
Cordel do Fogo Encantado

Contarei a história do barão

Que comia na mesa com seu pai

Era herdeiro primeiro dos currais

Mas gritou num jantar "Não quero nada! Nada!"

Nesse dia subiu num grande galho

Nunca mais o barão pisou na terra

Passou anos e anos na floresta

Andou léguas e léguas sobre as folhas

Construiu sua casa feito ninho

Beijou sua mulher perto das nuvens

Um concreto bordado nas alturas

Com manobras de amor no precipício

Quando amanheceu entre dois prédios

De pastilhas brancas e tandos andares

Ficaste bem mais distante

A luz, a sombra, a luz, vermelha, da roupa, da aurora...

Soube nessa madrugada do homem

Que não quis os minérios do pai

E não quis os segredos farpados da mãe

Subiu numa planta, no alto da pedra

Bem perto daqui,

E ficou por lá.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Apresentação

Limite... Quando, afinal, eu soube o real significado de tal palavra? Se não fosse a insistente mania de ir um pouco além, talvez Mari ainda estivesse viva. Encontro-me cansado. Logo eu, o guerreiro, o sempre amado de dona Iracema. Eu, que nunca me esquivei de qualquer desafio, sucumbi no momento em que mais era necessário. Mas isso é agora irrelevante. Devo eu falar do meu pior momento?

Ouvi alguma vez que as pessoas perfeitas são um tédio. A felicidade não traz lucro. Já o conflito.... Esse vende! O sadismo das pessoas sempre foi maior do que o bom senso. Ultimamente, tenho sentido essas aves carniceiras próximas, espreitando, esperando o melhor momento para terminar de destroçar o que restou. Tu queres mesmo saber sobre mim? Lembra bem do que eu te falei sobre limites. Bom, enquanto decides, alimentemos falsamente a idéia de que a vida pode ser interessante, bela. Por que não falar de Mariana? Eu poderia criar uma ode a cada cinco minutos pelo resto da vida sobre Mari. Declamar sobre como nos conhecemos. Sobre como havíamos calculado exaustivamente nosso futuro. Tu não ias nunca mais querer ouvir esse nome, de tanto que eu falaria nele. Ou o contrário aconteceria: tu te apaixonarias por ela. Hoje, não mais me importo. Brindemos a nosso anjo!

Mas ainda assim, insistes. O que queres saber exatamente, amigo? Pra que saber sobre passado, o que conquistei ou deixei de conquistar... Aquela baboseira de caminho percorrido, isso vai fazer diferença sobre a idéia que fazes de mim? Não creio. Bom, se te satisfaz um pouco, antes do ocorrido, eu havia concluído há pouco o curso de Ciências Contábeis. Sempre dei muito valor aos estudos, como me ensinou minha mãe. Cheguei a ser laureado na faculdade. Eu também sempre trabalhei com seguros. O que nunca deixou de ser um mistério para mim. É ambíguo. Quando se contrata um seguro de vida, por exemplo, parte-se do princípio que algo vai dar errado. Ou um seguro de carro. Quem o contrata, lá no seu íntimo, espera que um sinistro vá ocorrer. Da mesma maneira, tu deixas o instinto de ave carniceira falar mais alto. Tu estás disposto a te tornar um pouquinho mais infeliz? Muito prazer, eu sou o Lucas.

A Desforra

A língua acariciando o dente frouxo de Lauro, de certa forma lhe acalmava. Era preciso estar pronto para o revide, prever o próximo movimento. Nenhum dos expectadores se encorajava a intervir. Seu olhar não desgrudava do oponente; seus sentidos enlouqueciam-no, estavam por demais aguçados. O pequeno desvio do olhar era para o braço daquele filho da mãe cujo sangue caía pesado no chão e já começava a construir uma imagem, visão do único caminho possível. Se eu tivesse resistido um pouco mais, eu faria da minha faca a mais afiada, e, após arrancar, ergueria o braço dele como um troféu e o teria em minha sala, logo abaixo do retrato dos meninos – por mais sangue que eu tire desse verme, jamais serão vingados.

O resto de consciência a lhe fazer companhia, só cumpria o seu papel para que ele desfrutasse desse momento. Apunhalado na cintura, Lauro sentia cócegas. Não desviava a atenção daquele que transpirava crueldade, mas sentia os olhares angustiados. Ninguém ali queria presenciar uma tragédia – não outra. Sentiu o ar carregado de pânico com um leve esfumaçado de desejo secreto: ele devia concluir sua vingança.

O vizinho que ligou para a polícia desligou no momento de informar o local do confronto, saiu correndo porta a fora, uniu-se ao grupo e formaram um círculo cada vez mais fechado. Com alguma dificuldade ainda pôde ver, deitado no chão, o jovem assassino, verme tomado pelo desespero tentando se defender e sentindo sua faca afundar macia no pescoço de Lauro, aumentando a força e o delírio de daquele pai, que, a cada facada desferida no rapaz, ouvia claramente as vozes dos meninos rindo e dizendo que o amavam.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Quebra-Cabeça

Cuida de mim – foi a última coisa que te pedi, não tão tranqüilo o quanto parecia estar mas o suficiente para que tu me encarasse de uma maneira que eu não esperava. A tua mãe me perguntava, como havia sido, se estavas serena, afinal, não sentias mais. Sem poder lhe responder o que eu havia dito, dirigi-me a um sei lá onde, a três horas de casa. Foi lá que nos conhecíamos há exatamente cinco anos, e, ao canto oposto, perecias, mas não o bastante para deixar de esboçar-me aquele olhar antes de ir. Achei, em cima do roupeiro empoeirado e já devorado pelos obstinados destruidores de passado àquilo a que fui à procura: o primeiro presente que me deste, um quebra-cabeça. Sentei-me e fiquei a montá-lo – lembras que eu jamais havia conseguido e não te deixava mexer nele, com medo de que pudesses encontrar a solução antes de mim? Chegou o momento de eu te mostrar, eu consigo – provavelmente não havia conseguido devido a tua constante mania de preencher-me de tudo quanto é jeito, devido ao fato de jamais imaginar eu cá e tu aí, eis o impossível. Nós dois sempre um, sempre aqui, sempre em frente e ao interior. Sim, agora te provo. Cá estou, eu crente, você fria, a apenas observar-me e a cuidar de mim. O frio que faz a essa época na praia não está escrito em nenhum lugar, tudo parece acentuar esse medo de ser vencido por aquilo que ainda representas. Aqui há três semanas, nem sequer me ligaram para saber como estou, que maneira arranjei de abafar – desabafar? – tudo o que eu possa estar sentindo. Pois é. Concluí: desisto! Não sou bom para terminar esse jogo; se seu tivesse insistido enquanto vivias, talvez eu teria acompanhado a tua jogada e hoje saberia como me virar. Mas não. Não tenho por que continuar a brincar. Tenho fome. Sobrevivi esse tempo com as sopas em pó vencidas que havias deixado no armário desde o último verão. Mas aqui não faz sol, não tenho por que tentar fazer reviver-te aqui nesse local de onde jamais deveríamos ter saído juntos a planejar um futuro. Venta bastante, ótima oportunidade para deixar os últimos pedaços de convivência contigo irem-se para onde eu jamais possa encontrá-los de novo. Aproveito também para rasgar e deixar ir essas palavras, das quais nada sei sobre pretensões, mas que de alguma maneira eu temo. Quando voltar, irei ao endereço deixado pela tua mãe, desculpa não ter ido, mas nesses lugares eu enxergo tudo menos a paz tão difundida pelos santos, cruzes e tristes figuras das quais são formadas os cemitérios. Rasgo agora cada pedaço desta carta, se for de interesse de alguém – teu, por que não? – que ela seja reconstituída. Mas de que te adiantarias essas idéias, essas impressões sobre os primeiros momentos sem ti, te perguntas, me pergunto. Deixemo-las! Que sejam contadas pelo vento!

- Alô. Oi amor, é a Júlia. O que fazes aí?

- Oi... Tentei te perder. Ganhar. Perdi.

- Tenho sentido tua falta. Quando voltas?

- Eu volto... Em cinco minutos.

- Nem um segundo mais.

- Te amo.

- Ok. Beijo.

Passantes

Era apenas mais um. O olhar de Mário perdia-se cada vez que cruzava por aqueles pares de tênis que pendiam dos fios elétricos da cidade. Recém chegado da capital, perguntou a muitos do que se tratava e nunca obteve resposta. Como típico viajante, não costumava ficar muito tempo num só lugar, mas a paz do local era tanta que logo procurou uma casa. Além do inexistente índice de criminalidade, a beleza de lá era diferente, como se não pudesse ser vista e sim sentida.

Os seus passeios eram diários; ele já havia se tornado conhecido dos habitantes. Desistira de perguntar a eles sobre o mistério dos tênis; por mais que o assunto fosse engraçado, recebia como resposta um desconcertante silêncio.

Durante o almoço num vizinho, chamou-lhe a atenção uma voz, aos fundos da casa, a balbuciar algo que não entendia. Parecia que era o único, não só a não compreender, mas também a ouvir tal voz num tom de lamentação. Dirigiu-se ao quintal e avistou, num canto, uma criança que parecia ter uns dois anos. O garotinho não sabia falar ainda – tentava se expressar, não conseguia e chorava. Mário aproximou-se, fitou os olhinhos lacrimejantes e sentiu um ar gelado percorrer-lhe o estômago. O menino estava com um dos pés descalços, e, no outro, calçava um tenisinho vermelho, e talvez chorasse por isso, afinal o pé descalço estava sujo de lama. Assim que viu o menino junto a Mário, uma das mulheres que estava no almoço pegou-o no colo e o levou para dentro.

Passou-se uma semana do ocorrido e Mário soube da morte do menino. Uma dona de casa contava que ele sentia dores horríveis e era por isso que chorava tanto. “Não!” pensou ele. “Não era isso”. O choro daquele menino não era de dor física. Lembrava daqueles olhos e via um olhar maduro, desesperançado. Nunca sentira sensação mais estranha na vida. Ficou sabendo também que a família do menino, que havia chegado à cidade há menos de um mês, morreu ao cair de carro num precipício, não muito longe dali. A criança não estava junto, ao contrário do que todos inicialmente achavam. Mário, naquele dia, foi para a cama pensativo, em plena tarde ensolarada, e adormeceu. Acordou suado e com o corpo doído. O dia já não estava quente, e sim com uma brisa gelada, típica da primavera. Anoitecia. Estava faminto e foi até a cozinha. Começaram a lhe vir imagens na cabeça, provavelmente do sonho que tivera. Via pequenas pegadas sendo feitas na parede do quarto, pegadas de lama. “É, realmente fiquei impressionado com a história daquele menino”.

Foi dar uma volta. Caminhando pelas ruas vazias, deparou-se mais uma vez com um dos pares de tênis. Sem sono, por ter passado a tarde dormindo, não resistiu e resolveu contar quantos encontrava pela frente. Parou ao avistar um par de pequenos tênis vermelhos.

Após essa imagem, não lembrou de mais nada. Acordou engasgado com a lama que lhe atravessava a garganta. Tinha quase se afogado, seu joelho estava dobrado para frente. A cabeça só permanecia em cima do pescoço, após a queda, pois estava apoiada numa grande pedra que se coloriu de vermelho e marrom. Permanecia ali deitado, de barriga para cima, observando o céu estrelado. Próximo dali, sobre o capô de um carro parcialmente afundado, notou a presença de alguém. Perguntou a seu pequeno companheiro:

– Por que choravas?

– Chorava por mim e por ti – respondeu o menino.

– E o que fazemos aqui?

– O mesmo que eles – e apontou ao redor; eram muitos. – Agora, volta pra cidade, vai ver qual é o teu posto.

Antes que pudesse se perguntar como faria para sair dali, Mário viu-se levitando em direção à cidade, em busca de não sabia o quê. Era atraído por uma força. Ao sobrevoar as ruas, via algumas pessoas no mesmo estado que ele. Paradas, apenas vigiavam ao redor. Ao avistar num fio de luz o seu par de sapatos, olhou de súbito para os pés: estava descalço.

Ângulos

Ao acordar, uma folha seca no rosto. A rede embalando meus delírios. A casa era abraçada por árvores, mato e tudo mais de verde que pudesse servir para escondê-la. Seu lar, seu retrato: auto-suficiente e anti-social. Os lares vizinhos desfrutavam de simetria e recato. Ao passar na frente, olhares intrigados. Que seres habitam tal mundo? O que se passava lá dentro? Morava minha avó.

Difícil de lidar, infeliz quem ganha o papel de inimigo. Ninguém a passava para trás tamanha era a habilidade para cálculos (o que gostaria de ter herdado). A velhinha desprotegida e ingênua, só miragem. Após a morte de meu avô, morou anos sozinha. Não, claro que não. O que diria ela se eu não mencionasse o Grão-Duque, e os outros quatro cachorros e o Moreno, e os outros vinte e três gatos? Deserdava-me.

Após algum sofrimento fui operada. Uma infecção. Não era possível fechar o local da cirurgia. Quando morei lá, minha mãe pediu, cuidadosa, para que, pelo menos por um tempo, os bichos não entrassem em casa. A neta podia ter uma complicação mas, ficar sem os seus companheiros, inadmissível. Foi embora de casa. Nunca invejei tanto aqueles agregados.

Telhados, ruas, campos, horizonte eram vistos da árvore mais alta do quintal. Ao fundo, muito distante, uma voz chama: Cheguei!

Pés descalços, descia com cuidado; não queria ser responsável por nenhuma catástrofe na comunidade das formigas, não queria arrebentar a trilha ou levar a caravana para um local desprotegido.

O avental azul, deixado no cabedal. Sua atividade de operária numa fábrica de doces completava a profissão de avó. Lanche da tarde posto, municiado de guaraná, bolachas, doce de leite e muito mais (comi tanto que comi até a lembrança). Voltava das férias com quilos a mais.

Fim de tarde, vez dos discos. O tango, ouvido em todo o quarteirão quando meu avô ia beber no boteco da frente. Eu cuidava das carpas que pescávamos no Parque da Baronesa e que criávamos num balde (por que será que elas nunca sobreviviam?). Era hora de entrar mas o remédio de lama que eu colocava nos machucados das árvores ainda não tinha acabado. Eu desapontava como enfermeira e, na terceira chamada, ela ameaçava chamar o Dr. Camilo. Pânico. Sinônimo de injeção.

Hora de dormir. Deitada, lembrava que meu avô não era meu vô de verdade. O pai de minha mãe foi assassinado quando minha avó ainda estava grávida, com dezessete anos. O sonho dela consistia num filho homem. Ela não criou minha mãe e talvez por isso elas nunca tenham se entendido. Escuto um barulho na porta e um estrondo. Meu vô, caindo, provavelmente. Ele conquista o sofá e apaga. Já não dormem juntos há tempos. Adormeço ouvindo seus murmúrios incompreensíveis. Tratava-se da única hora que eles sustentavam um diálogo:

- Não faz barulho, vai acordar a Vivi.
- Ah, não incomoda! Vai dormir, tchê!”.

Acordo. Tiro a folha seca de meu rosto, felizmente, ela não despedaçou. Minhas costas estalam ao espreguiçar. Perdi o hábito de dormir em rede. De ser embrulhada.

Penitência

Padre, pequei. Às vezes, noto a verdade como um rascunho que desenhamos para passar o tempo. Eram muitas dúvidas, e tanto desapego, que decidimos terminar antes do carnaval. Não sentia falta de uma outra metade, afinal, sempre duvidei dos apaixonados.

Em meio a um tipo de ambiente que sempre evitei – música estourando os tímpanos, gente excedida, suada, espuma enredando os cabelos, olhos ardendo, os vários tipos de bêbados, dos melancólicos aos tímidos que resolveram tomar uma atitude, dos briguentos aos chorões – o vi, num retrato completamente destoante de todo aquele caos. Eram duas imagens que, a princípio, não se misturariam, nem nos sonhos mais absurdos. Um anjo no meio do inferno. Alto, magro, alemão, não-bêbado, culto. Gastava seu tempo dando aulas para crianças de quinta série durante o dia em Esteio, à noite estudava Filosofia em Canoas e repousava em Sapucaia. Chegou com a salvação para todas as minhas dúvidas, para me dar um rumo, para resolver minha vida. Papo cabeça, beijos exploradores, passeios pela praia. Foi assim durante os quatro dias de folia.

Após o carnaval, uma quarta-feira de cinzas, uma volta ao trabalho e, conseqüentemente, ao estado de consciência. Meu delírio não havia coincidido com o término do carnaval. A ressaca que me abatia não era curada com paninhos quentes ou chazinhos, a cura significaria uma tomada de atitude. Despistei o que pude, não tinha mais desculpas para não vê-lo de novo. A meu ver, carnaval não haveria graça se não fosse incorporado um personagem, e tudo dentro daquelas horas era tolerado, afinal, era a minha primeira vez foliando e não queria tornar isso um hábito. Entretanto, na volta, eu não precisei de ninguém para me julgar e declarar culpada, a mim cabia esse papel. Eram longas conversas ao telefone, pernas no ar e mente em Sapucaia. Numa delas, ao dizer que não podia vê-lo, pois estava enfrentando problemas com o pai (e que um dia lhe contaria já que era uma história complicada), ouvi algo perturbador:

- Não te preocupe, eu também tenho minhas coisas ocultas.

Só Deus sabe – talvez alguma outra entidade também tenha testemunhado – como as cinzas daquela quarta-feira já um tanto distante voltaram a crepitar. Nunca minha criatividade esteve tão ativa para essas “coisas ocultas”. Ele poderia ser casado, um ex-presidiário, um gay ainda em cima do muro, um psicopata – a dúvida me contaminava por dentro tanto quanto um câncer que vêm aflorando.

Qualquer tentativa de confissão, ao telefone, era perda de tempo. A vontade, a saudade e, principalmente, a dúvida me guiaram até o zoológico de Sapucaia.

Sua voz era perturbadora demais. Mas ele havia me avisado. Fui eu quem viajou, para onde nunca achei que o carnaval me levaria. Não suportei a idéia de saber que alguém não só enganava aos outros, mas, principalmente, a si mesmo. Não me restava outra saída.

Por isso, aqui estou, querendo pagar pelo meu pecado. Meu anjo era um padre.

O Sopro

Já andou de meia no sereno

Mas nunca dormiu numa cama em que tenha derramado comida

Nunca chupou roupa no varal

Mas já tatuou desenho na pele com caneta

Nunca cantou um desconhecido

Nem sonhou que estava se afogando e acordou babando