quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Ângulos

Ao acordar, uma folha seca no rosto. A rede embalando meus delírios. A casa era abraçada por árvores, mato e tudo mais de verde que pudesse servir para escondê-la. Seu lar, seu retrato: auto-suficiente e anti-social. Os lares vizinhos desfrutavam de simetria e recato. Ao passar na frente, olhares intrigados. Que seres habitam tal mundo? O que se passava lá dentro? Morava minha avó.

Difícil de lidar, infeliz quem ganha o papel de inimigo. Ninguém a passava para trás tamanha era a habilidade para cálculos (o que gostaria de ter herdado). A velhinha desprotegida e ingênua, só miragem. Após a morte de meu avô, morou anos sozinha. Não, claro que não. O que diria ela se eu não mencionasse o Grão-Duque, e os outros quatro cachorros e o Moreno, e os outros vinte e três gatos? Deserdava-me.

Após algum sofrimento fui operada. Uma infecção. Não era possível fechar o local da cirurgia. Quando morei lá, minha mãe pediu, cuidadosa, para que, pelo menos por um tempo, os bichos não entrassem em casa. A neta podia ter uma complicação mas, ficar sem os seus companheiros, inadmissível. Foi embora de casa. Nunca invejei tanto aqueles agregados.

Telhados, ruas, campos, horizonte eram vistos da árvore mais alta do quintal. Ao fundo, muito distante, uma voz chama: Cheguei!

Pés descalços, descia com cuidado; não queria ser responsável por nenhuma catástrofe na comunidade das formigas, não queria arrebentar a trilha ou levar a caravana para um local desprotegido.

O avental azul, deixado no cabedal. Sua atividade de operária numa fábrica de doces completava a profissão de avó. Lanche da tarde posto, municiado de guaraná, bolachas, doce de leite e muito mais (comi tanto que comi até a lembrança). Voltava das férias com quilos a mais.

Fim de tarde, vez dos discos. O tango, ouvido em todo o quarteirão quando meu avô ia beber no boteco da frente. Eu cuidava das carpas que pescávamos no Parque da Baronesa e que criávamos num balde (por que será que elas nunca sobreviviam?). Era hora de entrar mas o remédio de lama que eu colocava nos machucados das árvores ainda não tinha acabado. Eu desapontava como enfermeira e, na terceira chamada, ela ameaçava chamar o Dr. Camilo. Pânico. Sinônimo de injeção.

Hora de dormir. Deitada, lembrava que meu avô não era meu vô de verdade. O pai de minha mãe foi assassinado quando minha avó ainda estava grávida, com dezessete anos. O sonho dela consistia num filho homem. Ela não criou minha mãe e talvez por isso elas nunca tenham se entendido. Escuto um barulho na porta e um estrondo. Meu vô, caindo, provavelmente. Ele conquista o sofá e apaga. Já não dormem juntos há tempos. Adormeço ouvindo seus murmúrios incompreensíveis. Tratava-se da única hora que eles sustentavam um diálogo:

- Não faz barulho, vai acordar a Vivi.
- Ah, não incomoda! Vai dormir, tchê!”.

Acordo. Tiro a folha seca de meu rosto, felizmente, ela não despedaçou. Minhas costas estalam ao espreguiçar. Perdi o hábito de dormir em rede. De ser embrulhada.

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