quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Passantes

Era apenas mais um. O olhar de Mário perdia-se cada vez que cruzava por aqueles pares de tênis que pendiam dos fios elétricos da cidade. Recém chegado da capital, perguntou a muitos do que se tratava e nunca obteve resposta. Como típico viajante, não costumava ficar muito tempo num só lugar, mas a paz do local era tanta que logo procurou uma casa. Além do inexistente índice de criminalidade, a beleza de lá era diferente, como se não pudesse ser vista e sim sentida.

Os seus passeios eram diários; ele já havia se tornado conhecido dos habitantes. Desistira de perguntar a eles sobre o mistério dos tênis; por mais que o assunto fosse engraçado, recebia como resposta um desconcertante silêncio.

Durante o almoço num vizinho, chamou-lhe a atenção uma voz, aos fundos da casa, a balbuciar algo que não entendia. Parecia que era o único, não só a não compreender, mas também a ouvir tal voz num tom de lamentação. Dirigiu-se ao quintal e avistou, num canto, uma criança que parecia ter uns dois anos. O garotinho não sabia falar ainda – tentava se expressar, não conseguia e chorava. Mário aproximou-se, fitou os olhinhos lacrimejantes e sentiu um ar gelado percorrer-lhe o estômago. O menino estava com um dos pés descalços, e, no outro, calçava um tenisinho vermelho, e talvez chorasse por isso, afinal o pé descalço estava sujo de lama. Assim que viu o menino junto a Mário, uma das mulheres que estava no almoço pegou-o no colo e o levou para dentro.

Passou-se uma semana do ocorrido e Mário soube da morte do menino. Uma dona de casa contava que ele sentia dores horríveis e era por isso que chorava tanto. “Não!” pensou ele. “Não era isso”. O choro daquele menino não era de dor física. Lembrava daqueles olhos e via um olhar maduro, desesperançado. Nunca sentira sensação mais estranha na vida. Ficou sabendo também que a família do menino, que havia chegado à cidade há menos de um mês, morreu ao cair de carro num precipício, não muito longe dali. A criança não estava junto, ao contrário do que todos inicialmente achavam. Mário, naquele dia, foi para a cama pensativo, em plena tarde ensolarada, e adormeceu. Acordou suado e com o corpo doído. O dia já não estava quente, e sim com uma brisa gelada, típica da primavera. Anoitecia. Estava faminto e foi até a cozinha. Começaram a lhe vir imagens na cabeça, provavelmente do sonho que tivera. Via pequenas pegadas sendo feitas na parede do quarto, pegadas de lama. “É, realmente fiquei impressionado com a história daquele menino”.

Foi dar uma volta. Caminhando pelas ruas vazias, deparou-se mais uma vez com um dos pares de tênis. Sem sono, por ter passado a tarde dormindo, não resistiu e resolveu contar quantos encontrava pela frente. Parou ao avistar um par de pequenos tênis vermelhos.

Após essa imagem, não lembrou de mais nada. Acordou engasgado com a lama que lhe atravessava a garganta. Tinha quase se afogado, seu joelho estava dobrado para frente. A cabeça só permanecia em cima do pescoço, após a queda, pois estava apoiada numa grande pedra que se coloriu de vermelho e marrom. Permanecia ali deitado, de barriga para cima, observando o céu estrelado. Próximo dali, sobre o capô de um carro parcialmente afundado, notou a presença de alguém. Perguntou a seu pequeno companheiro:

– Por que choravas?

– Chorava por mim e por ti – respondeu o menino.

– E o que fazemos aqui?

– O mesmo que eles – e apontou ao redor; eram muitos. – Agora, volta pra cidade, vai ver qual é o teu posto.

Antes que pudesse se perguntar como faria para sair dali, Mário viu-se levitando em direção à cidade, em busca de não sabia o quê. Era atraído por uma força. Ao sobrevoar as ruas, via algumas pessoas no mesmo estado que ele. Paradas, apenas vigiavam ao redor. Ao avistar num fio de luz o seu par de sapatos, olhou de súbito para os pés: estava descalço.

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